BETIM, UM PARAÍSO SENDO DESTRUÍDO
MORADOR DO MUNDO

De repente a cabeça fica cheia de zumbidos, as
ideias se misturam, e um ser humano até então normal sai pelo mundo e começa a
vagar sem rumo como um zumbi ou como um Cristo abandonado que o mundo insiste
não enxergar.
De repente a família acha o idoso (a) um fardo
muito pesado para sustentar, o amor um sentimento muito difícil de assimilar, e
um pai ou uma mãe são abandonados na rua como cães sarnentos que ninguém quer
cuidar.
De repente os corações de pai e de mãe endurecem
como granito, a falta de amor espanca, humilha e maltrata o corpo e a alma de
um filho ou filha fazendo com que um, (a) jovem, ou uma criança também sejam
jogados na rua sem caminho e sem esperança.
De repente...
O divórcio.
A droga.
O álcool...
A fome e a falta da família.
O acasalamento irresponsável dos adultos.
O acasalamento irresponsável de jovens que não
tiveram onde se apoiarem.
A falta de emprego e de justiça.
A falta de governo e de escrúpulos dos políticos
que só governam para os próprios bolsos, e para os ricos.
O esquecimento de Deus!
Este conjunto maldito vai criando os andarilhos!
Pessoas atravessam o país de ponta a ponta como
quem procura algo precioso que ficou em algum lugar que não se lembra mais.
Pessoas dormem ao relento enquanto as cidades se
enchem de galpões vazios, e de igrejas vazias.
Estes são os moradores do mundo.
Os verdadeiros donos do mundo!
Habitantes ilustres e temporários de alguma cidade.
“Entulho” amontoado nos guetos que ninguém quer
recolher.
E enquanto o corpo tiver força e a estrada for
amena, as cidades serão apenas um local de descanso e reabastecimento.
O tempo é implacável, e a velhice chega de mansinho
como um amigo que não quer ir embora. Quando os anos obrigam o velho corpo a se
acomodar, é chegada a hora de parar em algum lugar e procurar um abrigo seguro,
mesmo que este seja debaixo de uma marquise ou de uma ponte.
Existem também os andarilhos urbanos, pobres
abandonados na sua própria terra que vagueiam pelas ruas trombando em parentes
que não reconhecem e nos amigos que fugiram, ou se esconderam atrás da falta de
tempo.
Aqui na minha cidade tivemos vários desses
deserdados, porém, a mais conhecida foi a “Geralda (Torrão da Igreja Velha)”,
ambas já morreram.
A Geralda era a alegria da garotada, quando
aparecia a algazarra estava formada, era pedra pra tudo enquanto era lado.
Ela morava na Vila Vicentina e morreu onde sempre
morou de verdade.
Na rua!
A Geralda atropelada, primeiro pela pobreza e pelo
abandono que a fez ir morar em uma vila vicentina, depois o golpe fatal dado
por um automóvel que a fez ir se encontrar com o criador.
A Igreja foi demolida por um prefeito já falecido,
com a complacência de uma população sem raízes que nada fez e assistiu tudo como
coisa natural.
Não sei se existe outra moradora do mundo mais
conhecida.
Quando criança fui a Ouro Preto e fiquei conhecendo
a Dona Olímpia, ela era tão popular que até sua foto era vendida como parte do folclore da cidade.
Os donos do mundo vivem à margem da sociedade, não
possuem documentos, e seus nomes não constam em nenhuma estatística.
Para os governantes e para muitas pessoas eles não
são gente!
Sobrevivem heroicamente como testemunhas do
abandono.
São mártires sem causa e sem bandeira, são santos
sem religião e sem credo.
São filhos do mesmo Pai e irmãos abandonados pelos
donos do poder que se preocupam apenas em se enriquecer cada vez mais, não
importando se para isso seja preciso massacrar os mais humildes e arrastar seu
semelhante para a miséria absoluta.
Os andarilhos são gente.
Moradores do mundo como o Sr. Juvêncio que veio sem
querer, e ficou.
Ele começou a andar pelas ruas catando uma lata
aqui, um papelão acolá, e assim ia tirando o seu sustendo do lixo que os
“educados” insistem em jogar nas ruas ou nas lixeiras onde só serão recolhidos
no dia seguinte.
Ele não era um mendigo qualquer.
Não fazia sujeira, revirava as lixeiras retirando o
que lhe interessava e arrumava tudo de volta para que nada sujasse a calçada e
a rua.
Andava de um lado para outro conversando sozinho,
fazendo movimentos com os braços como se estivesse regendo uma grande orquestra
de músicos imaginários.
Parecia um doido, seus braços viviam cheios de
sacos e sacolas que ele mais parecia uma prateleira ambulante.
Carregava um saco enorme nas costas como se ali
estivesse guardada toda a sua vida.
E é muito provável que o conteúdo fosse realmente
um tesouro.
Todas as lembranças e a falta delas dentro de um
saco. Toda uma vida dentro de um saco! Todo saco de vida carregado nas costas
encurvando a coluna.
Doendo!
Costumávamos chamar de doidos as pessoas que
falavam sozinhas.
Esquecemos que a solidão e o abandono são rolos
compressores que esmagam a vida.
Quando ninguém quer parar para uma simples
conversa, a solução é sair falando pelos cotovelos para que as palavras também
não resolvam fugir fazendo com que o silêncio torne a existência um fardo ainda
mais pesado.
No princípio as mães não deixavam os pequeninos
chegarem perto do sr. Juvêncio, e ameaçavam chamar o “homem do saco” para
levá-los quando fizessem alguma peraltice.
Então os pequeninos não se aproximavam do nosso
ilustre morador e quando o viam, se um deles não conseguisse fugir, o senhor
Juvêncio o abraçava e dos seus bolsos esfarrapados sempre saía uma bala para
adoçar a boca do pequerrucho.
Com o passar do tempo o nosso amigo foi ganhando a
confiança das pessoas, e assim conseguiu um quarto para morar.
Agora já não fica ao relento, e com isso os jovens
ganharam mais um lugar para o bate-papo.
A porta do barraco dele era o ponto de encontro, e
o Sr. Juvêncio era o interlocutor das conversas.
Na verdade, era ele o orador oficial da turma, e
não se fazia de rogado.
Quando lhe perguntaram se tinha documentos ele fez
um verdadeiro discurso: -Eu não preciso de documentos, porque com eles somos apenas
números. Eles servem apenas para prender as pessoas que chegam ao absurdo de
ter mais de uma agenda para marcar compromissos que não serão cumpridos.
Com ou sem documentos somos o que somos.
Como será que ele conseguia falar tão bem?
Quem será esse homem, de onde veio, e porque veio?
Será que ele sente falta da família, ou ela nunca
existiu?
Agora ele faz parte da cidade e as crianças não têm
mais medo do “homem do saco”.
Os adultos já o convidam para comer em suas casas.
Agora ele não fica mais sozinho e não precisa mais
buscar seu sustento nas lixeiras.
Mesmo assim vivia limpando as ruas como se fosse um
gari sem remuneração.
Visitava seu barraco apenas para
dormir.
Um belo dia a cidade ficou mais triste.
O “Sr. Juvêncio” havia desaparecido.
Os jovens percorreram todos os cantos da cidade à
procura do amigo, mas foi em vão.
Como a vida não pode parar, todos se acostumaram
com a ausência do “velho maluco”, mesmo sabendo que mais dia menos dia um outro
apareceria.
Ele já havia caído no esquecimento quando o
carteiro abriu uma carta endereçada à toda a cidade, e ela dizia.
“Desculpem ter saído sem me despedir, não suporto
as despedidas, e não tenho mais lágrimas para chorar.
A vida nesta cidade estava boa demais para ser
verdade.
A minha casa é o mundo, e o céu é meu telhado
enfeitado de estrelas.
Quero lhes agradecer por tudo que fizerem por mim.
Nunca vou esquecer esta cidade, aí foi a primeira
vez que fui tratado como um ser humano, mas não consigo viver entre quatro
paredes.
Ela foi o meu melhor quarto, e vocês os melhores
vizinhos que tive em toda minha vida
Excelent ,oportuno e realista esse texto.A solidão e o desamor acabam com os velhos ,jogados ao léo,sem destino. Abç
ResponderExcluirA narrativa engenhosa, a crítica transparente e a emoção sintática, que são oportunas e aprazível, é o que me impulsiona a continuar visitando este espaço e lendo estas palavras tão belas e fortes ao falar de sentimentos, ou ainda, da ausência destes. Agradeço por sempre responder meus comentários e de gostar de minha singela presença aqui.Parabéns pelo textos e por sua capacidade construtiva que é inédita e coerente.
ResponderExcluirAbraços, Wesley Carlos.
que texto é esse parabéns amigo!!!
ResponderExcluirOlá estimado Geraldo,
ResponderExcluirSeu texto gosta de "pôr a mão na ferida" e "chamar os bois pelos nomes.
Vivemos numa sociedade de consumo, onde, tal como o próprio nome indica, se consome, se usa e depois se joga fora.
Sentimentos? Valores? Amizade? Interacção? Ajuda? o que é isso, nos tempos, que correm?
Bonitas as histórias, que nos relatou: A da Geralda e do Sr. Juvêncio. Esses são os puros, e será deles o reino dos céus.
A solidão e a ausência de amor ao próximo, são responsáveis, actualmente, pelo estado a que chegou a sociedade.
Abraços carinhosos de luz.
Uma cronica perfeita do cotidiano amigo,seus persoanagens representam bem os grandes centros.Em cada um temos um tipo assim, que ali jogado nas ruas escondem suas historia e nos dão lição em algumas vezes.Este personagem final mostrou bem com o ser humano sonha com a liberdade.
ResponderExcluirMuito bom seu texto,rico em reflexão.
Um abração.
Boa tarde,
ResponderExcluirGostaria de uma ajuda, quem puder me ajudar favor responder no email:mauriciocamposmartins@hotmail.com
É porque meu sobrinho está fazendo um trabalho sobre Geralda Torrão, e ele precisava saber qual a data de falecimento dela.
Por favor, me ajudem !!!
Obrigado
E uma infeliz realidade que atravessa todas as sociedades. Enquanto os velhos têm dinheiro são estimados, quando o dinheiro ou bens se vão os velhos estão na fossa. Tudo adora o deus dinheiro esquecendo-se da história da manta partida ao meio.
ResponderExcluirGostava de cá voltar daqui a 100 anos.