06 dezembro, 2011

MORADOR DO MUNDO

                                                                                                                  




De repente a cabeça fica cheia de zumbidos, as ideias se misturam e um ser humano até então normal sai pelo mundo e começa a vagar sem rumo como um zumbi ou como um Cristo abandonado que o mundo insiste não enxergar. De repente a família acha o idoso (a) um fardo muito pesado para sustentar, o amor um sentimento muito difícil de assimilar e um pai ou uma mãe são abandonados em suas casas ou na rua como cães sarnentos que ninguém quer cuidar. De repente os corações de pai e de mãe endurecem como granito, e na  falta de amor espanca, humilha e maltrata o corpo e a alma de um filho ou filha fazendo com que um, (a) jovem ou uma criança também sejam jogados na rua sem caminho e sem esperança.
De repente... O divórcio... A droga... O álcool...
A fome e a falta da família. O acasalamento irresponsável dos adultos. O acasalamento irresponsável de jovens que não tiveram onde se apoiar. A falta de emprego e de justiça.
A falta de governo e de escrúpulos dos políticos que só governam para os próprios bolsos e para os ricos. O esquecimento de Deus!
E este conjunto maldito vai criando os andarilhos! Pessoas atravessam o país de ponta a ponta como quem procura algo precioso que ficou em algum lugar que não se lembra mais. Pessoas dormem ao relento enquanto as cidades se enchem de galpões vazios e de igrejas vazias.
Estes são os moradores do mundo. Os verdadeiros donos do mundo! Habitantes ilustres e temporários de alguma cidade. “Entulho” amontoado nos guetos que ninguém quer recolher.
E enquanto o corpo tiver força e a estrada for amena as cidades serão apenas um local de descanso e de reabastecimento. Mas o tempo é implacável e a velhice chega de mansinho como um amigo que não quer ir embora. Quando os anos obrigam o velho corpo a se acomodar é chegada a hora de parar em algum lugar e procurar um abrigo seguro, mesmo que este seja debaixo de uma marquise ou de uma ponte. Existem também os andarilhos urbanos, pobres abandonados na sua própria terra que vagueiam pelas ruas trombando em parentes que não reconhecem e nos amigos que fugiram ou se esconderam atrás da falta de tempo.
Aqui na minha cidade tivemos vários desses deserdados, porém, a mais conhecida foi a “Geralda Torrão da Igreja Velha” que era a alegria da garotada que corriam das suas pedradas.
Ambas já morreram. A Geralda morreu atropelada, primeiro pela pobreza e pelo abandono que a fez ir morar em uma vila vicentina, depois pelo golpe fatal dado por um automóvel que a fez ir se encontrar com o criador. A Igreja foi demolida por um prefeito já falecido, com a complacência de uma população sem raízes que nada fez e assistiu tudo como coisa natural.
Não sei se existe outra moradora do mundo mais conhecida. Quando criança fui a Ouro Preto e fiquei conhecendo a Dona Olímpia, ela era tão popular que até sua foto  era vendida como parte do folclore da cidade.
Os donos do mundo vivem à margem da sociedade, não possuem documentos, e seus nomes não constam em nenhuma estatística.
Para os governantes e para muitas pessoas eles não são gente!
Sobrevivem heroicamente como testemunhas do abandono. 
São mártires sem causa e sem bandeira, são santos sem religião e sem credo. São filhos do mesmo Pai e irmãos abandonados pelos donos do poder que se preocupam apenas em se enriquecer cada vez mais, não importando se para isso seja preciso massacrar os mais humildes e arrastar seu semelhante para a miséria absoluta.
Os andarilhos são gente. Moradores do mundo como o Sr. Juvêncio que veio sem querer, e ficou. Ele começou a andar pelas ruas catando uma lata aqui, um papelão acolá e assim ia tirando o seu sustendo do lixo que os “educados” insistem em jogar nas ruas ou nas lixeiras onde só serão recolhidos no dia seguinte. Ele não era um mendigo qualquer, não fazia sujeira e revirava as lixeiras retirando o que lhe interessava e arrumava tudo de volta para que nada sujasse a calçada e a rua. Andava de um lado para outro conversando sozinho e fazendo movimentos com os braços como se estivesse regendo uma grande orquestra de músicos imaginários.  Parecia um doido, seus braços viviam cheios de sacos e sacolas que ele mais parecia uma prateleira ambulante. Carregava um saco enorme nas costas como se ali estivesse guardada toda a sua vida. E é muito provável que o conteúdo fosse realmente um tesouro com todas as lembranças e a falta delas e toda uma vida dentro de um saco! Todo saco de vida carregado nas costas encurvando a coluna.
Doendo!
Costumávamos chamar de doidos as pessoas que falavam sozinhas. Esquecemos que a solidão e o abandono são rolos compressores que esmagam a vida. Quando ninguém quer parar para uma simples conversa a solução é sair falando pelos cotovelos para que as palavras também não resolvam fugir fazendo com que o silêncio torne a existência um fardo ainda mais pesado.
No princípio as mães não deixavam os pequeninos chegarem perto do sr. Juvêncio e ameaçavam chamar o “homem do saco” para levá-los quando fizessem alguma peraltice. Então os pequeninos não se aproximavam do nosso ilustre morador e quando o viam, se um deles não conseguisse fugir o senhor Juvêncio o abraçava e dos seus bolsos esfarrapados sempre saía uma bala para adoçar a boca do pequerrucho.Com o passar do tempo o nosso amigo foi ganhando a confiança das pessoas e assim conseguiu um quartinho para morar e agora já não fica ao relento, e com isso os jovens ganharam mais um lugar para o bate-papo e porta do seu barraco era o ponto de encontro e ele era o interlocutor das conversas.
Na verdade, era ele o orador oficial da turma, e não se fazia de rogado. Quando lhe perguntaram se tinha documentos ele fez um verdadeiro discurso: -Eu não preciso de documentos porque com eles somos apenas números e servem apenas para prender as pessoas que chegam ao absurdo de ter mais de uma agenda para marcar compromissos que não serão cumpridos e  com ou sem documentos somos o que somos.
Como será que ele conseguia falar tão bem, quem será esse homem, de onde veio, e  por que veio?
Será que ele sente falta da família, ou ela nunca existiu? Agora ele faz parte da cidade e as crianças não têm mais medo do “homem do saco e os adultos já o convidam para comer em suas casas e agora ele não fica mais sozinho e não precisa mais buscar seu sustento nas lixeiras. Mesmo assim vivia limpando as ruas como se fosse um gari sem remuneração e visitava seu barraco apenas para dormir.  
Um belo dia a cidade ficou mais triste, o “Sr. Juvêncio” havia desaparecido. Os jovens percorreram todos os cantos da cidade à procura do amigo, mas foi em vão.
Como a vida não pode parar, todos se acostumaram com a ausência do “velho maluco”, mesmo sabendo que mais dia menos dia um outro apareceria. Ele já havia caído no esquecimento quando o carteiro abriu uma carta endereçada à toda a cidade e ela dizia.
“Desculpem ter saído sem me despedir é que não suporto as despedidas e não tenho mais lágrimas para chorar, a vida nessa cidade estava boa demais para ser verdade.
A minha casa é o mundo, e o céu é meu telhado enfeitado de estrelas. Quero lhes agradecer por tudo que fizerem por mim. Nunca vou esquecer esta cidade, aí foi a primeira vez que fui tratado como um ser humano, mas não consigo viver entre quatro paredes.  Ela foi o meu melhor quarto, e vocês os melhores vizinhos que tive em toda minha vida.    

7 comentários:

  1. Excelent ,oportuno e realista esse texto.A solidão e o desamor acabam com os velhos ,jogados ao léo,sem destino. Abç

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  2. A narrativa engenhosa, a crítica transparente e a emoção sintática, que são oportunas e aprazível, é o que me impulsiona a continuar visitando este espaço e lendo estas palavras tão belas e fortes ao falar de sentimentos, ou ainda, da ausência destes. Agradeço por sempre responder meus comentários e de gostar de minha singela presença aqui.Parabéns pelo textos e por sua capacidade construtiva que é inédita e coerente.
    Abraços, Wesley Carlos.

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  3. Olá estimado Geraldo,

    Seu texto gosta de "pôr a mão na ferida" e "chamar os bois pelos nomes.
    Vivemos numa sociedade de consumo, onde, tal como o próprio nome indica, se consome, se usa e depois se joga fora.

    Sentimentos? Valores? Amizade? Interacção? Ajuda? o que é isso, nos tempos, que correm?

    Bonitas as histórias, que nos relatou: A da Geralda e do Sr. Juvêncio. Esses são os puros, e será deles o reino dos céus.

    A solidão e a ausência de amor ao próximo, são responsáveis, actualmente, pelo estado a que chegou a sociedade.

    Abraços carinhosos de luz.

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  4. Uma cronica perfeita do cotidiano amigo,seus persoanagens representam bem os grandes centros.Em cada um temos um tipo assim, que ali jogado nas ruas escondem suas historia e nos dão lição em algumas vezes.Este personagem final mostrou bem com o ser humano sonha com a liberdade.
    Muito bom seu texto,rico em reflexão.
    Um abração.

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  5. Boa tarde,

    Gostaria de uma ajuda, quem puder me ajudar favor responder no email:mauriciocamposmartins@hotmail.com

    É porque meu sobrinho está fazendo um trabalho sobre Geralda Torrão, e ele precisava saber qual a data de falecimento dela.

    Por favor, me ajudem !!!

    Obrigado

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  6. E uma infeliz realidade que atravessa todas as sociedades. Enquanto os velhos têm dinheiro são estimados, quando o dinheiro ou bens se vão os velhos estão na fossa. Tudo adora o deus dinheiro esquecendo-se da história da manta partida ao meio.
    Gostava de cá voltar daqui a 100 anos.

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